Costumavam
brincar comigo, dizendo que aquilo não era apenas uma rotina, mas
sim um ritual – e eu era a Suma Sacerdotisa, saudando um novo dia
em seu templo sagrado. Todos os objetos cuidadosamente dispostos
sobre a penteadeira, inclusive o espelho de aumento, amplificando
muitas e muitas vezes os detalhes que o tempo esculpiu em meu rosto.
Louvo cada pé-de-galinha, cada linha de expressão, por serem
lembretes dos anos bem vividos e também dos problemas e dificuldades
enfrentados. Sou Gaia, filha do Caos, e também aquela que gerou
Cronos.
Com o
adstringente, limpo todas as impurezas que se acumulam em cada poro,
todos os comentários infelizes e acusações infundadas que são
atiradas a todo momento contra mim. Nada disso me pertence mais e a
sensação de limpeza renova-me. Sou uma tela em branco, virginal,
pronta para me transformar em arte. Sou Perséfone, deusa da
primavera, mas também aquela que comunga com o submundo.
Pouco a
pouco, as pequenas manchas e máculas são disfarçadas e encobertas.
Não o tempo todo e nunca por completo. Sinto uma estranha satisfação
em contemplar as assim consideradas “falhas”. Abençoo as minhas
imperfeições, abraço
a minha mortalidade trágica à busca incessante pela juventude
fugaz. Com traços firmes, os olhos são delineados em preto.
Preparo-me como uma rainha amazona ante sua próxima batalha. Sou
Atena, portadora da égide divina; sou Diana, a donzela caçadora; e
também sou Morrigan, a rainha fantasma.
Embora
trabalhe com leveza, a mão aplica uma sombra escura sobre as
pálpebras. Quero infligir a ira divina no coração dos homens,
perturbá-los com o meu olhar incoerente. Carrego os mistérios do
oculto, das verdades imutáveis e não-ditas, dos desejos secretos,
escondidos sob uma fina camada de pó de estrelas. Sou Nimue, a dama
do lago; sou Hécate e sou Ísis, senhoras da magia.
Por fim
os lábios, rubros rubros rubros. Enrubescidos como sangue, como
fruta madura, como o desejo latente pulsando em cada célula
irrequieta. O toque macio da pintura é como a carícia de um amante,
deixando a sua marca visível aos olhos do mundo por breves e
deliciosos momentos. Sua paixão estampada em mim é tão envolvente
quanto os amores de Vênus e tão atemorizante quanto Kali, a
destruidora. Porque evoco em mim o que há de encantador e terrível.
Armo-me
para enfrentar o mundo diariamente, enfeito os cabelos presos com
pedras brilhantes, colorindo o rosto com a minha pintura de guerra.
Para me definir, para me agradar, me enamorar. Porque sou mulher e
pertenço a mim, somente a mim. E isso me basta.
(Escrito
em 26/03/2014 e faz parte da série "coisas estranhas que a senhoura dona jéssica pensa de manhã muito muito cedo".)
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